Produção coletiva substitui latifúndio estéril

10 de junho de 2008

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Por Humberto Márquez*

Uma pequena cooperativa leiteira obtém seus primeiros êxitos em meio à savana da Venezuela, país dependente dos alimentos importados.Barinas, Venezuela, 9 de junho (Terramérica) - “Em tudo isto que você vê não se produzia um único litro de leite, nem uma espiga de milho”, diz o venezuelano José Tapia Coirán, apontando com seus braços estendidos para o horizonte da savana salpicada de árvores. “Aqui obtemos 500 litros de leite por dia e colhemos mil toneladas de milho”, acrescenta. São as planícies de Barinas, sudoeste da Venezuela, onde trabalha a cooperativa Brisas del Masparro, em razão do nome dos rios que nascem nos Andes e levam suas águas ao Orenoco. Coirán, como é chamado por todos, ex-peão e tratorista em fazendas da região, é seu presidente.“Aqui, uma vez, existiu uma floresta, mas os latifundiários levaram toda a madeira. Deixaram umas poucas árvores e milhares de hectares de resíduos que pouco a pouco fomos limpando e semeando com pasto ou milho”, conta o dirigente. “Isto estava abandonado, sem produção, e por isso ocupamos a área”, acrescenta. Coirán e seus companheiros percorrem com o Terramérica quilômetros de terras, planas como mesa de bilhar, entre mato, algum pântano, pastagens ou terras sendo aradas para semear, a fim de ressaltar seus motivos ao ocupar o que foi terra improdutiva. Passam bandos de garças, corocoras vermelhas e alguns gaviões. “Queremos conservar tudo o que pudermos. Decidimos não cortar árvores, embora retiremos o mato e as pragas enquanto avançamos”, diz Miguel Méndez, outro integrante da cooperativa.

O presidente do país, Hugo Chávez, lançou uma “guerra ao latifúndio” com uma lei de terras, em 2001, que pautou o “resgate” estatal de fazendas cuja propriedade privada e condição produtiva não ficassem suficientemente demonstradas. No terreno houve, e continua havendo, os choques entre proprietários e camponeses. Os latifúndios ocupavam cerca de seis milhões de hectares em 1999. Dois milhões foram confiscados pelo governo, que entregou 60% dessa área a mais de cem mil famílias camponesas, segundo dados oficiais.Além disso, 98.500 unidades produtivas, que ocupam 4,3 milhões de hectares, regularizaram sua situação mediante a carta agrária, que concede a posse mas não a propriedade dessas terras, que continuam sendo estatais. A fazenda Santa Rita, às margens do Masparro, ocupava 31 mil hectares com não mais do que 1.800 cabeças de gado, segundo a cooperativa. Grupos camponeses a ocuparam em 2002 e 2003, e o Estado lhes destinou 16 mil hectares, deixando o restante com os antigos proprietários.Com seus 56 associados, a cooperativa que mais progrediu foi a Brisas del Masparro, com 803 hectares. Há cinco anos receberam um crédito de US$ 156 mil que investiram em bovinos, eqüinos, implementos e insumos, e, ainda, nas primeiras semeaduras. Já têm um rebanho de duplo propósito, carne e leite, à base de cruzamento entre animais aclimatados à planície tropical das raças zebu e holstein.Bens comunsUm casarão usado como abrigo de peões e depósito da antiga fazenda se converteu em sede comunitária.

A primeira impressão é de desordem. Restos de um trator no pátio vazio indicam o único ponto da área onde é possível captar sinal de telefone via satélite. Porcos e galinhas seguem atrás de um jovem que vai desfazendo algumas espigas de milho. Outro limpa um pouco o chão do corredor, cenário das assembléias. As paredes há tempos não recebem uma pintura. Ao fundo há uma cozinha e uma longa mesa de restaurante para os que trabalham nessa jornada e as famílias que se instalaram em casas improvisadas nos arredores. Em uma parede há cartazes descoloridos pelo tempo, de Chávez e do revolucionário salvadorenho Farabundo Martí (1893-1932).“Somos socialistas. Trabalhamos em comum, segundo a capacidade de cada um, e existe um rodízio para não fazermos sempre a mesma coisa e aprendermos de tudo. Não daremos conta se cada um for por seu lado, assim é muito difícil ir em frente e deixar de ser como éramos, peões, empregados, enriquecendo os outros’, diz o veterano Neptalí Quintana, durante muitos anos inseminador de vacas em fazendas da comarca. Fala recostado em uma varanda do curral, onde os mais jovens ordenham algumas vacas, pela segunda vez no dia. “Conseguimos cerca de cinco litros de leite diários por animal, acima da média” nesta região, que é inferior a quatro litros por animal, diz Quintana.Diariamente, a cooperativa doa 20 litros de leite para duas escolas da região, contam orgulhosos. “Colocamos o copo que cada criança precisa” explica Méndez. “Mas, se, além dos animais em comum, algum de nós tem uma vaca ou um cavalo ou consegue um leitão, pode criá-lo com os demais e ao vender o dinheiro é seu. Alguma coisa entregará à cooperativa, mas não nos opomos a essa propriedade. O que queremos é a terra e os demais projetos de vida”, diz Coirán. O dinheiro obtido “é usado para os gastos, que também são comuns, para produzir ou comer, e cada sócio recebe mensalmente 400 bolívares (US$ 180) como antecipação pelo que lhe caberia pela gestão anual da cooperativa”, explica Iraima Benaventa, jovem mãe de dois filhos e “responsável pela logística”.Aluna de um programa de estudos secundários à distância, Benaventa mostra as compras que trouxe da cidade com outro sócio – macarrão, arroz, vacinas para o gado – e supervisiona o trabalho de limpeza e de cozinha (nesse dia arroz e carne) que é feito pelos mais jovens. Brisas del Masparro começará a construir este ano 56 casas para igual número de famílias, com um plano de autoconstrução apoiado pelo governo. “As juntaremos em forma de povoado para facilitar e baratear os serviços, a água, a luz, o gás, uma quadra, uma casa comunitária, talvez até uma piscina”, explicam.Melhor comunidadeA este recanto do Masparro, chamado Las Piedras, se chega ao fim de uma hora de estrada partindo de Barinas, capital regional, passando junto a Sabaneta, o povoado natal de Chávez. Depois, viaja-se mais uma hora por um caminho de terra e cascalho que a cooperativa pede que seja asfaltado para benefício de toda a comunidade. “As fazendas desse setor estavam muito improdutivas há cinco anos. Mas com nossa luta chegaram programas do governo. Foi feita a estrada, começou um cadastro de terras, deram papéis de posse aos ocupantes particulares ou cooperativistas, se conseguiu créditos”, conta Coirán.Em Las Piedras “passamos de quase zero para 21 mil litros diários de leite (a produção nacional é de 1,3 a 1,7 milhão de litros por dia, segundo diferentes fontes).

Agora há gente criando mais gado, plantando milho, frutas e pastagens”, argumenta o dirigente. Caracciolo Ramírez, agricultor independente, tem sua parcela de aproximadamente 40 hectares dos terrenos da cooperativa. “O governo ajudou com cartas agrárias, com algum financiamento e a estrada. Melhorei minha casa, minha filha mais velha começou a universidade, vieram os resultados”, conta Ramírez, ao mesmo tempo que oferece um refresco de aveia com gelo a este repórter em uma área coberta ao lado de sua casa de tijolos.A cooperativa prepara uma área maior que a do ano passado para plantar milho, constrói um novo curral e reforma o velho para implantar a ordenha mecânica, e busca financiamento para instalar dois tanques de esfriamento, o que permitirá maior lucro em cada litro de leite. “Em todo o mundo, há crise de alimentos, querem usá-los para fazer combustível. Não concordamos e devolvemos o apoio do governo produzindo mais comida. Este país não pode continuar alimentando as pessoas às custas de importações, enquanto há tanta terra esperando para ser trabalhada”, diz Coirán.No período 2004-2007, a produção alimentar venezuelana cresceu 3,4%, passando de 18,9% para 19,6% ao ano, segundo o governo. Porém, o ex-ministro da Agricultura, Hiram Gaviria, aponta a insuficiência desse avanço: por habitante, a Venezuela produz hoje 88% dos alimentos que gerava em 1998, afirmou ao Terramérica. Longe de Barinas, em Roma, líderes mundiais discutiram, entre 3 e 5 de junho, mecanismos para superar a atual carestia dos alimentos, na cúpula da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO).

Na antiga fazenda Santa Rita, milhares de hectares “recuperados” pelo Estado foram entregues a outras cooperativas ou associações camponesas, que não exibem êxitos como Brisas del Masparro. “Fazemos assembléias na região e lhes oferecemos apoio, inclusive mais longe. Ao Apure (extremo sudoeste do país) levamos nossa experiência e as novilhas que produzimos, que lhes vendemos a preços menores, mas o individualismo de muitos compatriotas os leva a buscar uma parcela”, contam Quintana e Coirán.De volta a Barinas, um dos parceiros, Alejandro, acompanha o Terramérica. “Queremos formar uma cooperativa para trabalhar, mas que cada um tenha sua parcela, que possamos vender. Com a carta agrária, a terra não pode ser vendida e sempre será do Estado”. Alejandro afirma que os vizinhos de Brisas del Masparro vêem com simpatia a experiência e querem tê-lo como testemunho do que pode o trabalho comum. “Eles têm suas razões, o apoio do governo revolucionário, tudo bem, mas o que acontecerá amanhã se o governo mudar? Alguém quer um pedaço de terra para trabalhar, mas também a quer para seus filhos”, acrescenta Alejandro quando o sol já alaranjado desaparece entre as pastagens do sudoeste venezuelano.


* O autor é correspondente da IPS.


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Alimentação: Produzir 50% mais, propõe Ban
Fonte: Envolverde/Terramérica

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